Alice corria pela floresta se escondendo
nas sombras das arvores. O monstro a perseguia e mal esperava a hora em que
umas das partes de seu corpo tocasse a luz para que pudesse devorá-la por
completo, arrastá-la para o espaço iluminado, acabar com a sua vida e absorver
a sua forma.
O monstro desta
história é bem diferente da maioria dos monstros que você já viu. Ele não vive
na escuridão e ataca as suas vitimas a noite como os outros. É na luz que ele
se fortalece, deixa suas vitimas confusas andando nas trevas e procurando um
raio solar, mas ao primeiro contato com o brilho... O ataque! Outra forma de
ataque animal deste ser é através de superfícies refletoras, enquanto foge do
perigo, o individuo gasta toda a água armazenada em seu corpo, e quando se abaixa
para deleitar-se em um lago, mesmo que na parte escura... As garras
sanguinárias do monstro endiabrado rasgam a carne do pobre coitado.
Simplesmente não há como fugir desta ameaça.
¬Por quê? Como isso foi
acontecer? – Gritava Alice com toda a força de sua alma enquanto ouvia as
gargalhadas metálicas do monstro ao seu redor.
Ela se escondia sob a
sombra de um dos milhares de pinheiros da floresta. O dia estava frio, e a
neblina caia devagar sobre as grandes folhas das arvores, molhando o rosto da
menina. Sua camisa vermelha, bordada há algum tempo pela avó, agora estava
cheia de gotículas de água. Ela chorava desesperadamente e rogava por piedade
divina, afinal havia perdido o amor de sua vida e agora a morte lhe rodeava
esperando a hora em que o sangue pudesse espichar nos troncos duros da
floresta.
Pelo canto do olho ela
avistava os vultos da criatura por entre as plantas, ainda lembrava-se bem da
aparência medonha. A criatura não tinha rosto, só uma pele que vinha do
pescoço, encobria a cabeça e se colava as costas. Seu vestido de pele humana
era mais alvo que as nuvens de um céu claro, e suas mãos tinham unhas grandes e
pontudas. Alice não sabia de onde vinha o som, mas podia perceber que o monstro
emitia ruídos metálicos, às vezes em tom de riso.
No começo daquele dia
ela acordara normalmente como em qualquer outro. Saia para pegar um pouco de
água na fonte quando avistara Julian, seu amor secreto com quem ela sempre quis
ter uma vida a dois. Ele estava com o seu macacão por sobre uma camisa
quadriculada que encobria o peito musculoso do rapaz. Seus sedosos cabelos
castanhos estavam bagunçados como sempre, e o garoto olhava fixamente para
Alice com o par de olhos castanhos cor-de-mel. Era de tirar o folego o seu
olhar.
¬Oi Alice, como anda? –
Disse o rapaz enquanto se aproximava.
¬T-Tudo bem! –
Balbuciou a menina em resposta.
Já algum tempo que
Julian percebia a atração que Alice sentia por ele, afinal não era de hoje que
a menina corava toda vez que ele chegava perto. Quando criança ele não gostava
dela, achava aquilo de sentimentos muito besta, mas quando cresceu Alice ficou muito
bonita, deixou seus cabelos pretos crescerem até a cintura, começara a se
cuidar, e por ai vai. Julian considerava até a possibilidade de algo sério
entre os dois. Casar-se-iam, teriam filhos e os criariam ali na aldeia de
Avillar, construiriam um futuro lido juntos.
Ele chegou mais perto
para tentar uma aproximação maior, mas a menina deu um passo para trás, sem
lembrar que seu balde de água estava logo ali, foi então que tropeçou e quase
bateu a cabeça no chão, não fosse por Julian, que lhe pegara nos braços.
¬Não se afaste de mim!
Eu sei que você...
¬Não! Você não... –
Quando já ia começar um longo discurso, Alice foi interrompida por um beijo, um
doce e quente beijo. O seu primeiro, aliás. – Por que você fez isso? – Gritou
após receber o beijo afastando o menino de perto de si.
¬Vai dizer que você não
gostou?
A menina corou com a
pergunta e já ia virando até que o belo rapaz a agarrou pelo braço e tacou-lhe
outro beijo. Desta vez ela não resistiu, apenas aproveitou cada momento
enquanto estava colada com o homem com quem sempre quisera.
¬Não adianta mais
esconder esse sentimento! – Exclamou Julian pondo a mão por sobre o rosto da
amada.
Uma expressão triste
tomou conta do rosto delicado de Alice, uma lagrima escorreu do seu rosto e foi
logo enxugada por Julian.
¬Seu pai jamais
aceitaria, sua mãe me enxotaria da sua casa!
Julian era de uma
família de ferreiros ricos. Seu pai tinha uma grande fabrica metalúrgica onde
trabalhavam vários moradores da aldeia, entre eles Paul, o pai de Alice. A
menina nunca tivera direito a luxos, morava em um casebre enquanto seu amado
residia em uma mansão nos fundos da aldeia. Como filha única, a mãe sonhava em
lhe casar com um homem de boa condição, mas se casar com o filho do homem mais
rico era pedir demais.
¬Eu luto contra a
vontade dos dois! Olhe! Meu amor por você cresceu muito nos últimos anos, é um
sentimento forte demais para ficar guardado em meu peito! Eu faço o que preciso
for para ficar com você!
¬Faria mesmo?
¬Sim!
¬Não desperdice esta
chance minha neta! – Disse uma voz pro trás dos dois.
Eles si viraram e viram
que era Gondolice, a avó de Alice. Estava vestida com o seu velho vestido
branco e azul, sob o xale rendado. Gondolice sempre gostou muito de Alice por
ser a sua neta mais velha, e ao ver a declaração de Julian, ela ficou disposta
a não deixar a neta estragar a chance de ser feliz para sempre.
¬Mas vó...
¬Sua vó tem razão! –
Concordou Julian. – Eu até aceitaria fugir junto a ti.
Por um momento Alice
ficou esperançosa. Se eles saíssem daquela aldeia, os pais de Julian não iriam
interferir em nada e eles até poderiam morar em outra aldeia, ou até mesmo na
cidade, desfrutando o seu amor. Mas nem tudo seria um mar de flores. Alice
sentiria muita falta da sua família, de seu pai Paul, de sua mãe Juliet, e também
de sua avó Gondolice.
¬Eu sentiria muita
falta da minha família! E você não, Julian? – Indagou.
¬Não seria por muito
tempo, logo voltaríamos para cá, mas já bem casados, meus pais não poderiam
dizer nada!
ƒ um bom plano Alice!
¬Tudo bem! – Concordou por
fim. – Eu vou!
Julian lhe deu mais um
beijo, algumas pessoas que passavam até pararam para olhar a cena. Era melhor
que eles se apressassem antes que a noticia chegasse aos ouvidos de Solomon e
Martha, os pais de Julian.
¬Agora mesmo eu vou
para a floresta. Eu e Albert deixamos alguns cavalos e uma carroça lá, é certo
que meu irmão não me negará ajuda!
¬Pois então vá logo,
Julian! – Falou Gondolice. – Enquanto isso eu vou preparar uma trouxa de roupas
para Alice e algum suprimento de comida para que vocês não morram de fome! Nada
muito grande, só o suficiente para chegar à próxima aldeia.
¬Pois então vou indo! –
E assim saiu correndo muito feliz.
¬Parabéns minha neta,
vai se casar com um dos Bifrost!
¬Eu estou com medo vó!
Isso tudo foi muito repentino! Não é melhor esperar um tempo para fugir? Fugas
planejadas de ultima hora nunca dão muito certo.
¬Tudo dará certo, minha
filha! Mas lembre-se, diga para Julian pegar o caminho dos carvalhos e
salgueiros, jamais andar pela floresta de pinheiros!
¬Por quê?
¬Muitas mortes andam
acontecendo lá! É melhor evitar o caminho! Agora vamos... Temos muito que
aprontar!
Julian chamou Albert,
seu irmão, para juntos irem buscar os cavalos que um dia antes deixaram na
floresta após uma cavalgada. O irmão achara uma loucura a sua ideia de fugir.
¬Você vai abandonar a
vida boa que a gente leva aqui por causa de uma garota? E ela nem é umas das
boas...
¬Olhe o respeito com a
minha futura mulher! – Gritou Julian zangado. – Ela é a melhor mulher para mim
e ponto final!
¬Ainda acho burrice,
mas... O que vocês vão fazer, saindo sem dinheiro?
¬Eu tenho uma boa
quantia junta, então vou pegá-la e assim que chegarmos à próxima aldeia, ou até
mesmo na cidade, nós alugamos uma casa.
¬Parece até boa a sua
ideia, mas quando vocês voltam?
¬Talvez depois do
casamento, ainda não decidi.
Ao passo que caminhavam
e conversavam os dois já avistavam os dos cavalos marrons e mais ao longe uma
carroça em bom estado no chão.
¬Você sabe que a mamãe
vai ficar arrasada quando souber, não sabe?
Era verdade. Martha
Bifrost era uma mulher muito soberba e talvez não tivesse coragem de sair de
casa depois que toda a aldeia soubesse que seu filho mais novo fugira com a
filha de uma dos empregados do seu marido.
¬Ela logo mudará de
ideia quando vir o primeiro neto. Por isso penso que talvez seja melhor esperar
o nascimento de nosso primeiro filho para volta!
¬Você já está pensando
em filhos?...
¬Lógico...
Eles finalmente
chegaram aos cavalos, alguns poucos raios de sol que saiam por entre as nuvens
nubladas iluminavam os pelos lustrosos dos cavalos, as folhas de alguns
carvalhos haviam caído com o vento, e mais atrás sob a sombra de um salgueiro
estava a carroça que Julian usaria para fugir junto a amada. Os dois começaram
a desamarrar as cordas que prendiam os cavalos.
¬Eu vou contratar
alguém para que nos leve até a próxima aldeia, depois eu mando ele de volta
junto com o seu cavalo, depois eu e Alice prosseguiremos a viajem a cavalo, ou
ficaremos por lá mesmo...
Logo tudo estava pronto
e a carroça também devidamente amarrada aos cavalos, eles seguiram a cidade
onde Julian pegaria Alice e fugiria com ela, mas no meio do caminho viram rosas
muito bonitas, logo além de um pinheiro.
¬Olhe que flores
lindas, acho que vou fazer um buque para Alice...
¬Então vamos colhê-las!
– disse Albert.
Eles foram até as
flores e começaram a colhê-las. Julian as tirava do chão e ia entregando-as a
Albert que as arrumava formando um lindo buque. Quanto mais colhiam, mais viam
outras flores que poderiam complementar o arranjo e assim iam mais
profundamente na floresta, quando se deram conta já havia se passado mais ou
menos umas horas e eles já não eram mais capazes de ver outras arvores que não
fossem pinheiros.
¬Poxa parece que a
gente já está bem longe, não é Albert? – Dizia Julian enquanto colhia algumas
tulipas. Ao tentar entrega-las ao seu irmão percebeu que ele já não estava mais
lá. – Albert? – Ele olhou no canto e viu algumas flores vermelhas caídas no
chão e mais algumas manchas de mesma cor no chão. Ele se assustou ao perceber
que tudo estava coberto de sangue.
De repente um vulto
branco irrompeu do meio das arvores e Julian não teve nem o tempo para
distinguir o que era só sentiu as garras no seu pescoço e em seguida sua vida
se esvaiu.
Alice ajudava sua avó à
por as coisas em uma trouxa. Algumas roupas, uns pedaços de comida enrolados em
papel e um colar de ouro que pertencia a sua avó e já estava na família há
anos. As lagrimas escorriam do seu rosto e caiam por sobre as tralhas enquanto
a menina arrumava a bagagem. Seu sonho sempre foi se casar de branco e ser
levada pelo seu pai até o altar onde Julian a esperaria, mas esse sonho era
impossível, uma fuga seria a melhor ideia. Seria.
Sua avó a acompanhou até
a fronteira entre a vila e a floresta. A neblina caia fina sobre seu rosto, e
ela aguardava ansiosamente o momento em que seu amor a viesse buscar. As
arvores estavam com folhas de um verde marcante, costumeiras do começo do
inverno que assolava a aldeia. Tanto o rosto de Alice como o de sua avó estava
pálido, e as maçãs do rosto bem avermelhadas, o frio estava de matar, por isso
a jovem resolvera por a camisa vermelha que sua avó fizera há algum tempo, ela
a aquecia muito, a senhora por sua vez se cobriu com uma manta que carregava.
Depois de um tempo de
espera, Alice viu a silhueta de Julian saído por entre os carvalhos e
salgueiros da floresta. Ele estampava um sorriso largo, Alice jamais o vira sorrir
daquele jeito, pensou então que fosse apenas animação por estar fugindo com o
amor de sua vida, que era ela. Ao invés de vir até ela e carrega-la, ele
simplesmente saiu correndo e Alice entendeu esse ato como um chamado para que
ela o seguisse.
¬Onde ele está indo? –
Indagou Gondolice.
¬Provavelmente quer que
eu o siga! – Ela pegou as trouxas que estavam na mão da avó. – Tchau vó! Eu te
amo muito... – Sua avó lhe deu um beijo na testa, como ela sempre fazia ao lhe
cumprimentar quando ainda era jovem.
¬Eu também lhe amo
muito minha neta! Vá! Siga até a sua felicidade!
E assim Alice começou a
seguir o seu amado por entre a floresta. Os últimos resquícios de raios do sol
foram apagados pelas nuvens nubladas, e o verde das arvores dava uma nova
iluminação a cena. Mas aos poucos o verde marcante dos carvalhos e salgueiros
foi substituído por um de tom mais obscuro, e depois de um tempo de correria
Julian parou e virou-se para Alice. Seu rosto mostrava um sorriso cruel, o qual
assustou bastante a menina.
¬Por que essa cara
Julian?
Quando ele abriu sua
boca, o som metálico ecoou por ela e seus lábios começaram a se afastar como e
outra pessoa estivesse saindo da boca do rapaz. Aos poucos as roupas foram
entrando na pele, e esta foi tomando formato de um longo vestido. A face agora
não tinha nada, era simplesmente pele lisa, apenas com um corte tampado por
linhas o lugar da boca. As mãos ficaram mais femininas, mas de um jeito
assustador, e tinham garras grandes.
Alice ficou
extremamente assustada ao ver a cena, e começou a andar para trás até bater em
uma arvore. O susto lhe veio quando ela olhou para cima e viu o tipo da planta:
um pinheiro. Havia vários deles lá, ela havia corrido tão distraída que não
percebera esse detalhe. “Diga para Julian
pegar o caminho dos carvalhos e salgueiros, jamais andar pela floresta de
pinheiros! [...] Muitas mortes andam acontecendo lá! É melhor evitar o caminho!”,
dissera sua avó, naquele ponto em que ela estava já não dava mais para ver
qualquer outro tipo de arvore, e agora ela sabia o que havia causado as mortes,
a criatura que estava em frente a ela.
Quando a criatura
estava acabando de se transformar um pensamento atingiu pesadamente a jovem.
Julian havia morrido. Onde estava ele neste momento, ele não a deixaria sozinha
com um monstro, provavelmente a criatura havia devorado o seu amado. Lagrimas
escorreram do seu rosto e se misturaram as gotas de água que caiam do céu, uma
onda de tristeza abatia a menina.
Após estar totalmente
transformado, o monstro tentou se aproximar rapidamente de Alice, mas algo o
impediu. A jovem percebeu então que ele não podia entrar pela região sombreada,
era como se um campo de força o impedisse. A criatura horrorosa continuou
circulando a região ao redor da menina, às vezes ele mergulhava numa poça e
água e saia em outra.
Foi um bom tempo que se
passou, provavelmente agora já estava mais ou menos na parte das cinco horas da
tarde, Alice continuava chorando a se pergunta o que havia acontecido com seu
amado, algumas vezes tentou gritar, mas o grito era suprimido.
Ela teve uma ideia
arriscada, mas que talvez a salvasse. Ela não sabia ao certo o quanto estava
distante da floresta dos carvalhos e pinheiros, mas provavelmente não seria
mais que alguns metros. Talvez se ela chamasse a atenção do monstro com algo,
tivesse tempo para pular para outra sombra de arvore, e assim ela conseguisse
chegar à outra floresta. Ela não sabia se o monstro não poderia entrar naquela
parte, afinal ele se transformara em Julian para atrai-la e fora até a aldeia,
porém e se ele só pudesse ultrapassar os pinheiros quando estivesse
transformado? Ela poderia fugir para aldeia e pedir socorro.
Tirou uma das camisas
que estava em sua trouxa e jogou para trás, sentiu uma lufada de vento atrás de
si e pulou para a próxima sombra.
¬Deu certo! –
sussurrou.
E assim ela foi pulando
de sombra em sombra, algumas vezes bambeando e quase caindo, porém conseguia se
equilibrar e continuar a sua jornada até a aldeia. Aos poucos suas tralhas
foram sendo destruídas ao vento e a menina finalmente estava a uma sombra de
entrar na floresta dos carvalhos, a próxima sombra já era de um salgueiro, mas
a única coisa que lhe restara para jogar fora o colar que sua avó lhe entregara
com tanto amor.
¬É o fim, monstro! –
Sussurrou para si mesma. – Eu vou te despistar.
Quando ela jogou para
trás e deu um pulo para a sombra suas pernas se desequilibraram e saíram da
penumbra sombreada. Porém ela não se assustou, afinal já estava fora da região
dos pinheiros. Ela se virou olhando diretamente para o monstro que parecia lhe
encarar.
¬Você não pode mais me
pegar! – Exclamou quase sorrindo. – Eu não estou mais na sua área.
O monstro desapareceu
de repente e cravou a suas garras no peito da menina do qual espichou sangue.
Suas garras chegaram ao coração e a aberração pôs sua boca costurada por cima
do corpo, que foi absorvido aos poucos.
As feições feias do
monstro foram lentamente sendo substituído por traços femininos, cabelos
escuros, e maçãs do rosto vermelhas. Agora não se via mais um monstro, era
Alice que estava em seu lugar. Ele seguiu em direção a aldeia, onde atrairia
mais pessoas para a dolorosa morte.